REVISTA BRASILEIRA DE ORTOPEDIA
INTRODUÇÃO
As fraturas diafisárias do fêmur em crianças têm-se tornado cada vez mais comuns; atualmente chegam a representar cerca de 15 a 20% do total de fraturas do esqueleto(7,17), geralmente associadas a traumas de alta energia(4). A importância deste tema está na alta incidência desta entidade em crianças, pelo que o tratamento adequado é fundamental para equilibrar e orientar o crescimento correto deste indivíduo em formação, evitando as inúmeras seqüelas descritas. Desde o século XIX, percebeu-se que este tipo de fratura diverge das fraturas do adulto, particularmente quanto ao resultado final, independentemente do tipo de tratamento utilizado(8,26).
O tratamento com tração teve seu início em 1861, quando (26,29) introduziu a tração horizontal e em 1873, quando (26,29) descreveu a tração vertical, apresentando um método melhor de controle do alinhamento, facilitando os cuidados de enfermagem e proporcionando, dessa forma, maior conforto e segurança ao paciente. Com o decorrer do tempo, o manuseio das fraturas tornou-se mais sofisticado e os tratamentos baseados no repouso e confinamento no leito caíram em desuso, por não apresentarem resultados satisfatórios. O tratamento em tração adquiriu maior popularidade e tornouse o método mais aceito e recomendado para o tratamento de fraturas dos ossos longos em crianças a partir do início do século XX, em decorrência do fácil controle e melhora dos desvios angulares até que ocorresse a formação de um calo fibroso(8). Atualmente a tração esquelética 90-90 está substituindo a tração cutânea, principalmente em crianças maiores(1,13,17), pois a flexão do quadril e do joelho relaxa os músculos iliopsoas, isquiotibiais e gêmeos, facilitando assim o alinhamento dos fragmentos, a inspeção clínica do paciente e melhorando a drenagem venosa(24).
MATERIAL E MÉTODOS
Foram tratadas 31 crianças com fratura diafisária de fêmur, entre janeiro de 1992 e janeiro de 1995, pelo método tradicional de tração 90-90, até a formação do calo fibroso e posterior confecção de gesso pelvipodálico, sendo acompanhadas diretamente e reavaliadas em sua evolução. Apresentavam faixa etária entre quatro e 13 anos, prevalecendo as idades de sete e oito anos. Houve predomínio do sexo masculino, com 23 crianças, em relação ao feminino, com oito crianças, semelhantemente ao encontrado na literatura(4,14,22,23). Duas crianças apresentavam fratura bilateral, totalizando 33 fraturas diafisárias do fêmur tratadas conservadoramente.

Todas as crianças foram encaminhadas ao centro cirúrgico, onde, com técnicas de anti-sepsia, foram submetidas a tração transesquelética no fêmur distal, sob anestesia geral para as crianças menores que dez anos ou anestesia local para as com idade maior. Usamos fios de Kirschner de 1,5mm e 2,0mm de diâmetro, passados paralelamente à superfície articular do joelho(1), com o pino sendo colocado em ângulo reto com o eixo do fêmur e a 1cm proximalmente, ao tubérculo dos adutores(26). A fim de se poupar a fise, foi instalado a princípio um peso de aproximadamente 1/8 do peso corporal até uma pequena elevação da região glútea do lado fraturado e posteriormente controlado através de exame radiológico. A perna foi mantida com gesso suropodálico fazendo 90 graus de flexão com o joelho e com o quadril e algumas vezes o gesso circular foi substituído por uma malha tubular acolchoada, apoiada na panturrilha ou no calcanhar, especialmente nas crianças com escoriação importante de partes moles na perna (fig. 1). As crianças foram mantidas em tração por período que variou de duas a três semanas, dependendo da idade e da presença ou não de dor à mobilização do foco fraturário. Durante o tempo de tração, a criança esteve sempre acompanhada de um familiar. O controle das trações foi realizado clinicamente e através de exames radiológicos, de maneira rotineira, em PA e perfil, no segundo, quarto, sétimo, 14º e 21º dia de tração. Não usamos nenhuma incidência especial conforme Volpon & Bergamaschi(31) e Rossi & Barreti(27); para avaliar a rotação externa, baseamo-nos no exame clínico e no exame radiológico em PA e perfil, observando o traço de fratura que nos forneceu estimativa da rotação e através dos mesmos exames controlamos o encurtamento (variou entre 1,0 e 1,5cm) e os desvios em valgo, varo, anteversão ou retroversão femoral. A tração foi mantida por aproximadamente três semanas e se nessa ocasião o paciente não apresentasse dor ou mobilidade do foco de fratura, procedíamos à retirada do sistema de tração e à confecção de aparelho gessado pelvipodálico (fig. 2). Os pacientes recebiam alta hospitalar após 24 horas de observação. O aparelho gessado foi mantido por aproximadamente três a cinco semanas até surgirem evidências radiológicas de consolidação da fratura.

RESULTADOS
Das 31 crianças tratadas com 33 fraturas diafisárias de fêmur, todas consolidaram. Houve predomínio do lado esquerdo, com 20 fraturas, contra 13 do fêmur direito. Utilizamos a classificação quanto ao traço e o local da fratura: 23 foram no terço médio, sendo nove oblíquas e 14 transversas, e dez localizaram-se no terço proximal do fêmur, sendo sete oblíquas e três transversas. Não houve necessidade de fisioterapia para as crianças e após o primeiro ano de acompanhamento o padrão da marcha estava normal em todos os casos e as amplitudes de movimento do quadril, do joelho e do tornozelo estavam simétricas.

A tração transesquelética permitiu-nos controlar o grau de encurtamento (fig. 3) e os desvios angulares através de sua manipulação, apesar de dois casos apresentarem encurtamento igual ou superior a 2,0cm, em decorrência da presença de fratura de tíbia ipsilateral, que de acordo com Taylor et al.(30) é o trauma mais comum associado à fratura de fêmur. Em nossa casuística, não constatamos nenhum caso de hipercrescimento conforme Keating(3,8,26) observou já em 1890, provavelmente em decorrência do acompanhamento ter sido de apenas um ano. Registrou-se um tempo médio de tração de 19,3 dias, com permanência hospitalar média de 20,8 dias; o gesso pelvipodálico foi usado por um tempo médio de 35,4 dias (tabela), diferentemente do trabalho de Aronson(1), em que o tempo médio foi de 58 dias.
Nenhum dos casos apresentou desvio rotacional importante (maior que dez graus), apesar de alguns autores referirem pequena remodelação desse desvio(5,11,16,32). A média de discrepância entre os membros inferiores foi de 0,71cm após o primeiro ano de acompanhamento. Não observamos desvios angulares importantes e clinicamente todas as crianças estavam bem. Não houve infecção nos pinos e nenhuma criança apresentou escara. Calo hiperplásico não foi observado em nenhum caso, apesar de ter sido relatado por Burchardt et al.(6); através do exame clínico, a força muscular do quadríceps não apresentava alteração significativa(20).
Verificou-se predomínio importante do atropelamento como causa principal da fratura, em decorrência da localização de nosso hospital. Não observamos lesão fisária devida à tração durante o acompanhamento destas crianças. A fratura foi considerada consolidada quando através de evidência de calo ósseo no exame radiológico e ao exame clínico o paciente era capaz de suportar seu peso no membro fratura-(34). Divergindo do trabalho de Taylor et al.(30), o trauma mais comum associado à fratura de fêmur em criança foi a fratura do antebraço.
DISCUSSÃO
O tratamento conservador da fratura diafisária de fêmur em criança apresenta uma variedade enorme de opções e deve ser individualizado para cada paciente. O tratamento com tração esquelética 90-90 é fácil, porém trabalhoso, pois exige vigilância constante por parte do médico e habilidade para corrigir as deformidades através da manipulação da tração, sendo necessário acompanhamento diário de um membro da família da criança.
A grande desvantagem está no maior período de permanência hospitalar, em comparação com outros métodos de tratamento. As radiografias seriadas nos permitiram controlar adequadamente os principais desvios angulares e o encurtamento; conforme Wallace & Hoffman(32), as crianças menores de 13 anos com desvio até 25 graus em qualquer direção irão remodelar até o alinhamento normal das articulações, ocorrendo quase 70% da correção em um ano e aproximadamente 100% em seis anos. Herbert et al.(17) recomendam tração prévia nas fraturas de fêmur e aceitam como angulação máxima 15 a 20 graus no plano coronal e 30 a 40 graus no sagital, com encurtamento de 1,0 a 2,0cm e rotação no máximo até 10 graus, obtendo excelentes resultados.
Staheli(26) comenta sobre a tração domiciliar, na tentativa de diminuir o afastamento da criança desse ambiente. Ape-sar da fratura de fêmur estar associada a trauma de alta energia(2,4,13,14,18,22,23), nos casos de crianças menores de três anos de idade, principalmente se for do tipo em espiral, deve-se pensar em síndrome da criança espancada(14,17,22,23).
O uso do gesso pelvipodálico no tratamento das fraturas de fêmur vem desde o século XIX e ganhou popularidade após o trabalho de Dameron & Thompson, em 1959(10), relatando bons resultados, além de diminuir o tempo de internação. Rapidamente, vários autores entusiasmaram-se com o método(7,8,15,19,21,24,33); com o passar do tempo, diversas complicações foram relatadas, principalmente encurtamento excessivo(7,12,21), desvios angulares importantes com alta incidência de rotação externa(5,26,27), paralisia do nervo ciático poplíteo externo(33), dermatites, escaras(17).

Outra opção está baseada no tratamento cirúrgico, especialmente utilizado nas crianças com traumatismo craniano, politraumatismo, joelho flutuante, fraturas expostas com lesão de partes moles(2,25,28) e para correção de discrepância causada pela falha do tratamento conservador(28), em que Elias et al.(12) optaram por síntese intramedular seguida de gesso pelvipodálico, obtendo bons resultados em crianças em más condições socioeconômicas. Entretanto, apesar dos bons resultados e da diminuição da permanência hospitalar, o tratamento cirúrgico causa ao paciente risco em dobro, pois necessita de duas exposições anestésicas, duas cirurgias com risco de infecção, além de poder ocorrer falha do material de síntese.
A fratura de fêmur é uma das poucas fraturas em crianças que necessita de hospitalização(23); segundo Shank(34), o tempo médio de consolidação é de 0,7 semana por ano de idade. Reeves et al.(25), em seu estudo comparativo entre o tratamento cirúrgico e o com tração seguida de gesso, observaram que ambos apresentaram bons resultados, mas que: 1) o tratamento cirúrgico diminui o tempo de internação; 2) o custo diário da hospitalização no tratamento cirúrgico era de 600 dólares (com média de nove a 15 dias) e o do conservador era de 450 dólares (com média de 26 a 29 dias); 3) o método conservador aumentou o custo do tratamento em 46%, em relação ao cirúrgico, apesar de não terem sido considerados os custos da cirurgia, da anestesia e da segunda cirurgia para retirada da síntese, além do risco em dobro de complicações cirúrgicas e anestésicas.
CONCLUSÃO
O presente estudo demonstrou a eficácia do tratamento conservador das fraturas diafisárias do fêmur em crianças, sem necessitar de procedimentos cirúrgicos. Este tratamento pode ser executado mesmo quando o estado geral da criança não permite cirurgia, ou quando não se dispõe do material necessário para o procedimento operatório apropriado.
A técnica utilizada no tratamento de crianças com fraturas diafisárias do fêmur em nossa casuística tem como vantagens: seqüelas mínimas, boa aceitação, a possibilidade de corrigir desvios durante a tração e confecção do gesso e a mínima possibilidade de perder a redução após o gesso. A principal desvantagem é o período prolongado de internação.
Verificou-se baixo índice de complicações e observaramse melhores resultados em crianças menores, o que coincide com a literatura especializada.
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